O JAPÃO É POP

O paí­s deixou de ser o grande prodí­gio da economia mundial, mas sua influência na cultura jovem cresce cada vez mais

Carlos Graieb, de Tóquio

publicado na revista VEJA, edição 1835, nº 1, ano 37, 7 de janeiro de 2004

Durante a década de 80, o Japão foi o grande prodí­gio da economia mundial. Cresceu vertiginosamente e muitos acreditaram que o paí­s teria fôlego para superar os Estados Unidos como potência econômica. Então, no começo de 1990, a Bolsa de Valores de Tóquio despencou. Não era um tropeço passageiro, e sim o primeiro sintoma de uma crise estrutural de dimensões gigantescas. Nos últimos treze anos, a economia japonesa se manteve estagnada e deflacionária, as dí­vidas governamentais subiram a ní­veis astronômicos, o desemprego aumentou, o sistema bancário revelou-se em frangalhos e a previdência social está à beira do colapso. O país ainda possui um produto interno bruto de 4 trilhões de dólares, o segundo maior do planeta. Mas o Japão perdeu contato com seus “espíritos animais”. A expressão foi cunhada pelo economista inglês John Maynard Keynes na década de 30, para designar o otimismo de um povo em relação ao futuro. O otimismo japonês é baixí­ssimo hoje em dia. Exceto, talvez, num ponto. Segundo muitos observam, a influência cultural do Japão se expandiu na década passada, e ele desponta como um criador de tendências no universo pop, que engloba Áreas tão diversas quanto moda, animação, música e design. O primeiro a refletir sobre o fenômeno foi o cientista polí­tico americano Douglas McGray, num ensaio de 2002, cujo tí­tulo se poderia traduzir como Charme Interno Bruto (uma brincadeira com produto interno bruto). “O Japão”, diz McGray, “está reinventando o seu poder. Em vez de sucumbir ao peso de seus infortúnios, ele só aumenta a sua presença cultural no mundo, e criou uma poderosa máquina de propagação do charme nacional.”A ideia foi adotada com entusiasmo por polí­ticos, acadêmicos e jornalistas japoneses. Alguns vão ao ponto de anunciar uma metamorfose. É o caso de Ichiya Nakamura, ex-burocrata de alto escalão do Ministério das Telecomunicações e atual diretor do Stanford Japan Center, em Tóquio. O Japão, segundo ele, estaria passando de sociedade industrial a “sociedade produtora de cultura pop”.

Estima-se que as exportações japonesas de produtos culturais girem em torno dos 13 bilhões de dólares por ano. O valor é modesto se comparado, digamos, ao da indústria automobilística – que fatura a mesma coisa em dias. Trata-se, no entanto, de um valor que triplicou na década passada. nenhum setor da economia japonesa pode se gabar de proeza semelhante. histórias em quadrinhos, desenhos animados e videogames são os pontas-de-lança do pop japonês. A grande rede Mandarake de comercialização de mangás (gibis) já conta com filiais nos Estados Unidos e na Europa. Os consoles PlayStation e Nintendo  dominam o mercado de games. Cerca de 60% dos desenhos vistos na TV mundial são criação japonesa. Cada um desses setores, sozinho, tem força considerável. E eles ainda agem em sinergia, com o perdão da má palavra. Personagens surgidos num segmento quase sempre migram para os outros. Depois, vem o licenciamento para bugigangas. Os monstrengos Pokémon nasceram num videogame e foram parar na TV, no cinema, em roupas e bonequinhos. Desde seu surgimento, em 1996, a marca gerou negócios globais de cerca de 30 bilhões de dólares. Mas influência cultural nem sempre se traduz imediatamente em números vultosos, como lembram os ideólogos do Japão Pop. Deve-se prestar atenção a outros indícios.

Os desenhos de longa-metragem do cineasta Hayao Miyazaki, por exemplo, ainda não se transformaram em campeões de bilheteria no Ocidente, mas Miyazaki foi premiado no Festival de Berlim e no Oscar pelo filme A Viagem de Chihiro. Neste ano, a marca francesa de acessórios de luxo Louis Vuitton convidou o pintor Takashi Murakami para estampar uma linha de bolsas. murakami, freqüentemente comparado ao americano Andy Warhol e líder do movimento Superflat, que reúne vários artistas plásticos, também acaba de erguer uma escultura em frente do Rockefeller Center, em Nova York. Profissionais da moda europeus visitam Tóquio para conferir os exuberantes figurinos da garotada local, dividida em incontáveis tribos, enquanto jovens estilistas japoneses como Jun Takahashi e Naoki Takizawa são aclamados nas temporadas internacionais de desfiles. A Ásia forneceria ainda mais provas de poder de atração da cultura nipônica. Em lugares como Taiwan e Hong Kong, ouve-se a música de estrelas como Ayumi Hamasaki ou Utada Hikaru e assiste-se a novelas japonesas. Mal saem da gráfica no Japão, revistas de moda e comportamento são contrabandeadas para países vizinhos, onde encontram um público ávido. “Os habitantes dos países asiáticos adoram seriados como Tokyo Love Story, que despertam mais empatia do que os similares americanos. eles se sentem culturalmente próximos do Japão. Esse intercâmbio cultural não dá sinais de arrefecer”, escreve Koichi Iwabuchi, estudioso da mídia da Universidade Católica de Tóquio.

É a juventude japonesa que mantém alimentados os “espíritos animais” do mundo pop. No campo criativo, ela vem demonstrando uma disposição inédita para assumir riscos e desviar-se do caminho tradicional – aquele do emprego vitalício numa grande corporação. Nos últimos anos, explodiu no Japão o número de bandas e selos musicais independentes. Vários artistas surgidos nesse ambiente obtêm vendagens superiores a 500 000 exemplares, marca que caracteriza um sucesso no país. Um grupo, o Mongol 800, que mistura guitarras punk com letras no dialeto da ilha de Okinawa, vendeu 2,5 milhões de cópias de seu segundo álbum, Message, e teve canções incluídas nas listas de karaokê, ao lado de Madonna ou Beatles. Outro fenômeno são as bandas de nip hop (o hip hop nipônico). “Até três anos atrás elas simplesmente imitavam os sucessos americanos, mas agora surgiu um estilo local que é muito mais interessante – mais melódico que o hip hop negro e com letras que têm mensagens de amor, e não de violência”, diz o crítico Atsushi Shikano, editor-chefe da revista musical Rockin’ on Japan. Também na moda, jovens estilistas como Jun Takahashi, da marca Undercover, mostram força para andar com as próprias pernas. A fofoca, dada como verdadeira em Tóquio, é que Takahashi teve seus negócios bancados por um magnata do setor imobiliário no início, mas depois rompeu esses laços para sustentar-se por sua conta e risco.

Mas o exemplo mais pujante de espírito empreendedor vem da área de animação. Há, é claro, algumas gigantes no ramo. O Studio Ghibli, de Hayao Miyazaki, é o equivalente japonês da Disney (aliás, é a Disney que distribui seus filmes no mundo). Seu foco principal são os filmes animados de longa-metragem, que arrastam multidões para o cinema: A Viagem de Chihiro, por exemplo, teve 23,5 milhões de espectadores no Japão. A empresa conta, ainda, com um parque temático nos arredores de Tóquio, o Museu Ghibli. “Recebemos cerca de 600 000 pessoas por ano”, diz Goro Miyazaki, diretor do parque e filho do animador Hayao. No campo da animação para a TV, o líder é o estúdio Toei, fundado em 1956. Ele já criou mais de 150 séries de sucesso, entre as quais Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, Sailor Moon e Digimon, bem conhecidas no Brasil. A cada ano, 250 novos episódios novos de animação saem de seus escritórios. Esses gigantes, no entanto, convivem com um grande número de empresas pequenas bem-sucedidas. segundo um estudo de mercado, há hoje 437 estúdios de animação no Japão, empregando 5 000 profissionais especializados. “São empresas capitaneadas por seus próprios criadores, e isso é muito peculiar no Japão, terra das megacorporações”, diz Ichiya Nakamura.

Ao contrário do que se pode imaginar, não é fácil conquistar o gosto dos jovens japoneses. O dinheiro mais curto fez com que eles se tornassem mais seletivos na hora de comprar discos, gibis e roupas. Em 1995, segundo uma pesquisa da rádio Tóquio, alunos de colegial podiam gastar, em média, o equivalente a 170 dólares por mês. No fim de 2002, o valor caíra para 70 dólares. O mesmo ocorreu com a turma em idade universitária: seus gastos mensais passaram de 550 dólares para 310 dólares, em média. Alguns cultivaram o hábito de poupar – tudo o que os economistas japoneses não gostariam que acontecesse. afinal, o Japão se encontra preso numa “armadilha de liquidez” – situação em que os preços não param de cair, mas ainda assim empresas e consumidores não se animam a gastar. Entre as gerações mais velhas, preocupações imediatas explicam a timidez nos gastos. Planejar uma aposentadoria não é tarefa muito simples no Japão de hoje em dia, pois uma crise previdenciária está no horizonte, e não há fontes alternativas de rendimento, graças ao bizarro sistema financeiro japonês. Lá, os juros pagos pelos bancos para depósitos de pessoas normais são baixíssimos. Foi a maneira que o país encontrou para financiar o crescimento de suas empresas na época do milagre econômico: captar quase de graça junto ao público e emprestar quase de graça para as companhias. Sem falar na enrascada em que os bancos se meteram: eles estão afundados em créditos podres, que jamais conseguirão recuperar e que tentam esconder com uma parede de silêncio e com técnicas de “contabilidade criativa”. Esse sistema criou uma situação ridícula, em que os rendimentos anuais de um poupador aposentado giram em torno dos 200 dólares, em média, Entre as gerações mais jovens, o medo do desemprego depois da formatura explica por que uma parcela da mesada vai parar debaixo do colchão. Dos 548 000 estudantes saídos da universidade em 2002, apenas 312 000 conseguiram encontrar um trabalho em tempo integral.

Apesar de tudo, a juventude japonesa ainda forma uma claque esbanjadora. Ela não hesita em arranjar um bico numa lanchonete quando quer comprar um novo modelo de telefone celular, um acessório de grife ou o CD de sua banda favorita. A exuberância desse tipo de consumo é o que faz de cidades como Tóquio e Osaka grandes laboratórios de experimentação pop, luminosas vitrines de tendências. “Tóquio se tornou um dínamo do circuito fashion não necessariamente pela originalidade do que se vê nas ruas, mas pelo incrível entusiasmo exibido pela meninada. É para conferir essa atmosfera efervescente que profissionais de moda de todo o mundo fizeram da visita anual a Tóquio uma obrigação”, diz a jornalista especializada Emiko Oku. A existência dessa juventude animada só não é uma notícia melhor para os arautos do “grande império pop japonês”por um motivo: ela está encolhendo. Enquanto a fatia de pessoas acima de 65 anos na população japonesa mais que dobrou nos últimos trinta anos (foi a 18,5% em 2002), o número de pessoas com menos de 15 anos caiu: é, atualmente, de 14,2%, um recorde negativo. Há projeçòes que falam numa taxa de natalidade de 1,1% em 2007. Em outras palavras, o Japão está se tornando rapidamente o país mais velho do mundo. Nesse rítmo, por mais que os adolescentes de Tóquio gastem livremente, não haverá uma quantidade suficiente deles para fazer a diferença. Eis aí outro quesito em que os japoneses deveriam dar rédea solta aos seus “espíritos animais”.

BOX 1 – OS “AIDORUS” DA MÚSICA POP

O Japão tem a segunda maior indústria de música pop do mundo. Vem depois dos Estados Unidos, e seu volume de negócios é estimado em 20 bilhões de dólares anuais. o fenômeno do momento é a ascenção dos selos musicais independentes. Mas os artistas mais populares ainda pertencem às grandes gravadoras. O sonho dessas gravadoras é criar um “aidoru”. A palavra vem de “idol”, ídolo em inglês, com pronúncia à moda nipônica. Ninguém define melhor o conceito do que a cantora Ayumi Hamasaki, de 25 anos. É impossível visitar Tóquio sem tomar conhecimento de sua existência. Ela já vendeu perto de 35 milhões de discos, e seus hits não saem das rádios. Além disso, a cantora é presença constante na TV e seu rosto está estampado em campanhas publicitárias. As adolescentes imitam sua maneira de vestir-se – o chamado “Ayu style”. Meses atrás, Ayumi adotou o hábito de usar grandes óculos de sol no estilo dos anos 70 e criou uma febre em torno desse acessório. Musicalmente, é uma espécie de Britney Spears bem-comportada. Ela mesma compõe suas canções, que falam de amor e liberdade. O auge de um aidoru costuma durar dois anos. Ayumi vem suportando a superexposição há quatro. “Nas paradas, ela até enfrenta uma rival de peso, Utada Hikaru. Mas ainda não surgiu um nome com a mesma influência no comportamento dos fãs”, diz o crítico Atsushi Shikano.

BOX 2 – CONSUMIDORES JOVENS AGORA BUSCAM A SIMPLICIDADE

Depois de mais de uma década de recessão, os hábitos de consumo da juventude japonesa estão mudando. Vários institutos de pesquisa trabalham para detectar a direção dos ventos. O Centro de Estudos do Consumidor da Dentsu – uma gigante da propaganda mundial – produziu um relatório sobre os produtos supérfluos que mais atraíram a atenção dos jovens de 2002. “Produtos que permitiram às pessoas experimentar um modesto desvio da rotina tornaram-se hit”, diz o documento. Os produtos foram agrupados em quatro esferas. Na primeira, aqueles que favorecem a individualidade: minimáquinas de lavar para lingerie e cadeiras de massagem entraram nessa categoria. A segunda é a dos produtos que “respondem ao desejo de estar com os outros”, como videofones e tintura de cabelo loiro (que se tornou um jeito de se misturar à massa). Na terceira esfera, os produtos que remetem a uma vida mais simples. Um livro fez sucesso nesse domínio: Se o Mundo Fosse uma Vila de 100 Pessoas. Na última esfera encontram-se referências à tradição. Chá verde gelado e bolinhos de arroz substituíram a junk food para muitos jovens, que também procuraram reimpressões de gibis dos anos 60. Quanto ao fascínio dos japoneses por grifes estrangeiras, ele ainda existe. Mas seus maiores fãs seriam pessoas na faixa dos 30 anos, que viveram o boom econômico.

BOX 3 – O SUCESSOR DE ISSEY MIYAKE

Nos anos 80, estilistas como Yohji Yamamoto e Issey Miyake puseram o Japão no mapa da moda. Agora, uma segunda geração de designers começa a se firmar. São nomes como Nigo, da marca de streetwear A Bathing Ape, Jun Takahashi, da grife Undercover, e Naoki Takizawa – que desde 1999 dirige as coleções da marca Issey Miyake, além de ter aberto uma loja de roupa jovem com seu próprio nome num badalado centro comercial de Tóquio, o Roppongi Hills. Aos 43 anos, Takizawa acredita que a moda precisa se comunicar com o restante da cultura. Já colaborou com o coreógrafo William Forsythe, do Balé de Frankfurt, e com o time de Takashi Murakami, estrela da arte pop japonesa. Ele próprio é artista plástico e concebeu recentemente uma instalção sobre os índios ianomâmis. “A tecnologia é muito importante para mim”, disse Takizawa a VEJA. “No Ocidente, os fabricantes de tecidos apresentam seus produtos aos estilistas, que criam a partir dali. Aqui, nós mesmos desenvolvemos os nossos”. Em sua última coleção, Takizawa explorou uma fibra finíssima para criar mimetismos entre pele e roupa. Takizawa também fez versões de “roupas de um futuro próximo”, com sapatos que se prolongam em calças, macacões e uniformes. O estilista diz que se inspira nos jovens de Tóquio. “Às vezes eles parecem estar à nossa frente”.

BOX 4 – PALAVRA FAVORITA: “LIBERDADE”

Uma pesquisa realizada por um grande jornal anos atrás, revelou que as palavras preferidas da população japonesa em geral eram “paciência”, “harmonia” e “concordância”. Em suas raras entrevistas, o romancista Haruki Murakami, de 54 anos, nunca deixa de mencionar que sua palavra favorita é “liberdade”. Esse é um dos motivos de sua enorme popularidade entre jovens e adolescentes. Os livros de Murakami têm como protagonistas pessoas na faixa dos 20 ou 30 anos que enfrentam crises existenciais. Já houve quem os descrevesse como niilistas, mas Murakami discorda. “Eles são apenas pessoas desconfortáveis com sua posição na sociedade”, disse ele a VEJA. Murakami não se filia a nenhum grupo literário e evita até mesmo conhecer precursores. “Nunca li um livro inteiro de Mishima”, diz ele, referindo-se a um dos maiores ícones da ficção japonesa moderna. Quando despontou na literatura, nos anos 80, muitos qualificaram sua linguagem como influenciada em demasia pelo inglês. Hoje seu estilo é reconhecido pela crítica, que também o elogiou por voltar-se para questões da história e da sociedade japonesa. Haruki Murakami já vendeu 20 milhões de livros no Japão e cerca de 3,8 milhões no resto do mundo (ele é cada vez mais popular na Ásia). Caçando Carneiros e Minha Querida Sputnik são suas obras publicadas no Brasil.

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