“Kanata Kara”, de Kyoko Hikawa

Por Célia Sayuri Yano

1Kanatakara“Kanata kara” (Das Terras de Lá) é um dos poucos mangás atuais que traz uma mensagem positiva de todas as coisas, mesmo das consideradas ‘más situações’. Dosando ação e romance num roteiro ágil e bem elaborado, Kyoko Hikawa conta a aventura de Noriko, que fora atirada num outro mundo, onde era aguardada como a criatura que iria despertar a força de um terrível poder. O que se descobre no decorrer de 14 volumes espanta e encanta os leitores. “Kanata kara” foi publicado inicialmente na revista feminina “Lala”, entre os anos de 1992 e 2003, onde recebeu aceitação e exaltação de um grande público, além das leitoras assíduas da revista, formada por mulheres na faixa dos vinte aos trinta anos.

A ambientação romântica do desenho feita num mundo fantasioso e o ideal do personagem-herói romântico é uma característica ‘clichê’ do shõjo mangá, que traz também a figura do homem pró-ativo e da mulher sendo mais passiva – elementos que não condizem tanto code algo. Quero satisfazer esse desejo, saciar o que me falta”; ao que Noriko percebe: “Não se pode se satisfazer estando sozinho.”, ou seja, sendo egoísta e arrogante, sem jamais pensar nas necessidades do ‘outro’ como ser humano. E ela se recorda do rei Geida, expulso de seu próprio reino por conta de intrigas: “O mundo é grande!  Diversas pessoas vivem nele, cada qual com seus pensamentos e seu modo de vida.” (…) “Se pensar bem, há inúmeros elos onde sequer podemos ver. Essas roupas que visto, os instrumentos que uso, são coisas feitas por várias pessoas…as plantas e os animais, na terra, na água, na luz, todos se auxiliam mutuamente.” E Geida diz: “Nós somos um ponto nesse elo.” E Noriko pensa: “O que será?… a minha diminuta força foi mantida viva dentro de Izaak e de Doroz (responsável pelos criadouros dos intrigantes animais ‘timos’ onde trabalhava sob os jugos de Latief; quando conheceu Noriko, eledecidiu abandonar essa vida miserável ao ajudá-la a escapar dos comparsas do seu ex-senhor); foi ampliada em muitas vezes dentro deles…”

“Os sentidos fluem, expandem-se…”, ela reflete enquanto está acamada. “O ponto  de contato é aqui, o coração que possuímos. O mundo da luz existe na fonte de nossa existência…”, dissera o sábio Kreaditta, perseguido em sua cidade e condenado ä morte por seus pensamentos humanitários. E Izaak, quando conseguiu escapar do santuário do mal juntamente com ela, disse:  “A luz emergiu das profundezas do meu ser, de debaixo do poder maligno, quando voltei meus olhos para dentro de mim pela primeira vez”.

Nas partes finais, Izaak vai ao encontro do seu destino por conta própria e Noriko, mesmo sem ter poder algum e ainda acamada, consegue descobrir a fonte do poder através da palavra ‘gratidão’. Com isso, parte de si vai com Isaak. O encontro deles é notável. O que ela desperta nele é o ‘eu’, a essência oculta debaixo do poder maligno que habita seu corpo e quer dominar seu coração. O poder maligno da terra, representado por um demônio, é destruído por esse poder que emana dos dois, e todos que estão sob seu jugo são destruídos ou libertados. Nas figuras dos derrotados vemos pessoas atormentadas com o seu passado, que sofreram e se revoltaram com sua situação; ou que simplesmente queriam ser melhores que os outros, desejando tornarem-se fortes para cobrir a carência que sentiam em seus corações. Enfim, pessoas humanas, que seguiram caminhos tortuosos e errados, achando que eram as únicas saídas que tinham.

2Kanatakara

O poder de Izaak, agora livre da maldição, possibilita que haja um canal por onde Noriko possa retornar ao seu mundo, mas ela escolhe ficar com ele e reconstruir aqueles reinos juntamente com seus novos amigos. Ela envia para seu mundo apenas os diários em que registrava os acontecimentos do ‘mundo de lá’ – para  seu irmão, seus pais e o avô. Seu pai é escritor de ficção e publica os diários de Noriko, um alento para as pessoas que batalhamno seu dia a dia, tentando fazer o melhor para realizar ‘algo’, sendo elas mesmas.

Ter gratidão. Eis a palavra chave para a vitória. Gratidão pelas oportunidade de se comprovar os benefícios da vida. Isso quer dizer gratidão pelas adversidades que ocorrem na vida; graças a elas, podemos triunfar, ter um presente melhor que o passado e criar um futuro melhor do que o atual. Bonita teoria, quase impossível na prática. ‘Quase’, ainda bem. Tudo na vida é ‘aprendível’.  E gratidão é um excelente exercício, o principal para a auto reforma, que só se aprende de uma única forma: agindo. Dizer um ‘muito obrigado’ de coração é diferente de dize-lo simplesmente por ‘educação’… a interiorização dessas atitudes sinceras é apreender o significado da vida em si.

“’Aquele que tiver na mão esse poder será o soberano do mundo’, disseram a respeito do Grande Poder Demoníaco adormecido dentro de Izaak; mas ele determinou em seu ser e escolheu levantar-se do lado da Luz.”

‘Poder’ por si só nada significa. A questão está na escolha que as pessoas fazem para utilizar esse poder. Estar vivo é uma forma de ‘poder’; como usar essa vida é por conta do indivíduo.

As pessoas  vivem sempre em prol de algum objetivo; querendo fazer ‘algo’; realizar desejos além de manter a vida, a sua proteção e a perpetuação da própria espécie. Deixar algo na história é uma forma de perpetuar suas realizações, o motivo pela qual vieram a este mundo. “As pessoas querem servir para alguma coisa, serem úteis” – para isso vivem e mantêm a vida. Ao perceberem que são úteis…que elas são importantes, realizam coisas extraordinárias. E esse poder o Universo oferece de sobra! Aquele que tem esse poder, torna-se de fato ‘o monarca do mundo’.

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Kanata Kara © Kyõko Hikawa, Hakusensha

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