Gekiga review

por Cristiane A. Sato

GEKIGA (pronuncia-se “guekigá”) significa “desenho dramático” e designa um estilo de mangá de traços menos caricaturais e deformados, e histórias com roteiros complexos, dramáticos e temas adultos. Via de regra, no ocidente costuma-se definir GEKIGA como “graphic novel” ou “mangá adulto”, o que muitas vezes é confundido com a idéia de quadrinhos pornográficos, o que é algo bastante equivocado. GEKIGA é tido como um tipo de mangá adulto apenas por não ser um mangá com características infantis nem adolescentes, com personagens desenhados no estilo distorcido de olhos grandes, corpos extremamente magros, cabelos espetados de cores incomuns, e de aventuras em mundos fantasiosos com robôs, super-poderes e romance ingênuo.

Quase todos os autores e títulos de mangás conhecidos no ocidente são os para o público infantil e adolescente, que possuem versões em animê. Pelas características do público visado, mangás e animês para adolescentes enfatizam temas e aspectos de moda. Se por um lado estes mangás, em especial os shõnen mangá e os shõjo mangá,procuram estar “antenados” com  as ondas do momento, eles também sofrem com as mudanças súbitas de tendências – o que é comum ocorrer entre crianças e adolescentes. Assim, por exemplo, se histórias com características de video-game, baseadas em torneios ou duelos entre personagens que acumulam super-poderes à medida que avançam de nível entram na moda, todos os mangás para adolescentes passam a usar a mesma receita. Mas quando o gosto do público muda ou a receita dá sinais de cansaço, uma queda brutal de vendas de revistas torna-se inevitável. Este foi um dos fatores que fez com que revistas de mangá que dez anos atrás vendiam 6 milhões e meio de exemplares por semana, tenham terminado 2005 vendendo menos de 3 milhões por semana no Japão: uma gigantesca variação negativa de 54% numa única década.

Com enredos maduros e desenho mais realista, os GEKIGAS são mangás para um público adulto, menos sujeito a modismos, porém mais exigente quanto ao conteúdo dos roteiros das histórias. Sob a ótica moderna do que hoje é considerado quadrinhos e mangá, os primeiros GEKIGAS surgiram na década de 50, como uma alternativa de leitura de entretenimento para um público que não se identificava com os mangás publicados em revistas na época, essencialmente infantis e direcionados a um público prioritariamente – e obviamente – de crianças. Nos primeiros anos do pós-guerra, o centro da cidade de Osaka concentrou um grande número de kashihonyás, livrarias que vendiam e também alugavam livros – uma alternativa barata para se ter acesso a leituras (algo importante para um país em reconstrução e com a população empobrecida). Nestes estabelecimentos, ao invés de comprar livros e revistas, os freqüentadores podiam inscrever-se como numa biblioteca circulante, pagando tarifas bem baratinhas para ficar com algumas leituras por alguns dias. Os kashihonyástambém alugavam fanzines – mangás originais desenhados e encadernados à mão por desenhistas aspirantes. Alguns desses desenhistas tornaram-se tão famosos no meio fanzinístico, que posteriormente acabaram sendo contratados por editoras e desenvolveram prósperas carreiras como Tetsuya Chiba, o desenhista do clássico Ashita no Joe (Joe de Amanhã).

Sem limitações de qualquer tipo, que seriam obviamente impostas por editoras, os desenhistas de fanzines apenas procuravam agradar seu público, que de regra eram pessoas adultas, ainda que fossem jovens (na época, devido às dificuldades impostas pela guerra e pela miséria do pós-guerra, a adolescência durava pouco e jovens de 18 anos já eram considerados praticamente adultos com responsabilidades – aos 20 anos muitos já eram casados, tinham filhos e trabalhavam longas horas para sustentar a família). Para agradar tal perfil de público, desenhistas de mangá procuravam desenhar de modo mais clássico, menos cartunístico, e desenvolviam histórias cujos enredos dramáticos pareciam-se mais com os de filmes e novelas, com os quais os leitores se identificavam mais. Assim surgiram os GEKIGAS modernos.

Assim como o mangá no Japão foi resultado de uma evolução da mistura de leitura de entretenimento cômico com artes gráficas praticada ao longo dos séculos, o GEKIGA é herdeiro de uma tradição semelhante. Histórias dramáticas e sérias, contadas através de impressos com desenhos e diálogos foram uma forma de diversão popular desde a Era Edo (1603-1867). No século XVIII surgiu um tipo de literatura popular em linguagem acessível para a burguesia, que foi chamada de gesaku-bungaku (cultura da escrita). O gesaku-bungakuabrange uma série de gêneros de literatura popular que foram publicados de 1740 até o fim do século XIX. Gêneros de gesaku-bungaku foram apelidados conforme o assunto de que tratavam, e haviam os sharebon, os ninjõbon, os kokkeibon e os yomihon.

Os sharebon (livros sacanas) apareceram por volta de 1755 e eram basicamente contos eróticos baseados na vida de cortesãs de Edo e Osaka. Considerados obscenos pelas autoridades, os sharebon foram proibidos pelo governo shogunal em 1790, que os substituiu pelosninjõbon (livros sentimentais). Os ninjõbon, por sua vez, eram contos sobre a vida cotidiana e os valores dos chõnin (pessoas comuns, os que não são nobres) – a classe burguesa nas cidades. Haviam também os kokkeibon (livros engraçados), que desde 1733 publicavam sátiras e comédias, e os yomihon (livros de leitura), que surgiram por volta de 1744 para publicar contos de fantasia baseados na mitologia chinesa e romances de ficção com fundo moral, como aventuras de samurais idealistas. Alguns yomihon também se baseavam em personagens da vida real, como os 47 Ronins.

No início do século XIX, estes gêneros literários, que eram obviamente direcionados a um público adulto, ganharam versões mais baratas, de baixo custo de impressão, que se tornaram acessíveis para uma camada maior da população (algo similar aos atuais livros impressos em papel de boa qualidade com capa dura, que também são vendidos em versões mais baratas, impressas em papel-jornal e capa mole). Essas versões mais baratas eram chamadas de kusazõshi(publicações mal-cheirosas), devido a um odor que emanava da tinta de baixa qualidade que era usada na impressão de tais livros. Mesmo com cheiro, o fato é que as pessoas os compravam e o preço baixo ajudou a popularizar as publicações.

Um dos tipos mais apreciados de kusazõshi foram os famosos kibyõshi(livretos amarelos), assim chamados pela cor amarelada do papel em que eram impressos, nos quais eram publicados histórias para crianças e versões ilustradas de histórias consagradas no gênerogesaku-bungaku para adultos. Os kibyõshi são considerados antigos precursores do mangá e do GEKIGA.

Quando por volta de 1814 o artista de gravuras ukiyo-e Hokusai cunhou a expressão “mangá” (desenho humorístico) ao usá-la como título para uma série de elaboradas gravuras de caráter cômico, os japoneses passaram a usar a expressão GEKIGA (desenho dramático) para designar os trabalhos cujo desenho e conteúdo era sério ou dramático. No século XX, “mangá” tornou-se sinônimo de “histórias em quadrinhos” no Japão, mas a expressão sempre foi relacionada a uma idéia humorística e cartunística de quadrinhos. GEKIGA tornou-se sinônimo de histórias em quadrinhos sérias, com conteúdo dramático e adulto.

Revistas de mangás para adultos no Japão possuem periodicidade quinzenal ou mensal, e a mais vendida atinge atualmente a tiragem de 1 milhão e 700 mil exemplares. Embora tais revistas nunca tenham “explodido” em tiragens como as de mangás adolescentes, o público dos mangás adultos tem se revelado mais estável e constante ao longo de décadas. Enquanto os mangás para crianças e adolescentes quando muito geram versões em animê, os GEKIGAS são matéria-prima não só para versões em desenho animado, como também filmes, novelas e séries de tevê. Os GEKIGAS possuem roteiros complexos e cativantes, que exigem certo grau de maturidade e conhecimento dos leitores para serem adequadamente apreciados – por isso não são mangás para crianças e adolescentes.

O primeiro GEKIGA amplamente publicado e conhecido no ocidente foiKozure Õkami, o “Lobo Solitário”, criado pelo escritor Kazuo Koike e pelo desenhista Goseki Kojima. Publicado originalmente de 1970 a 1976 na revista “Mangá Action”, este GEKIGA deu origem a uma longa série de tevê, uma novela, seis longas para cinema e até músicas. Tendo Kojima falecido há alguns anos, o roteirista Koike voltou recente a produzir novas histórias do “Lobo Solitário”, agora enfatizando o filho do protagonista Itto Ogami, Daigorõ. Mais recentemente, no Brasil, houve a publicação de Vagabond, mangá inspirado nas muitas versões existentes sobre a vida do samurai Musashi Miyamoto. Tais publicações passam uma equivocada idéia no Brasil de que os GEKIGAS seriam basicamente mangás de samurais, mas o que veremos daqui para a frente é que o mundo do GEKIGA oferece um leque muito maior de assuntos. Basta citar, por exemplo, que a série de mangá adulto mais famosa do Japão, Golgo 13 do desenhista Takao Saitõ, tem como protagonista um assassino profissional internacional. Hoje considerado um clássico, Golgo 13vem sendo publicado em capítulos na revista “Big Comic” ininterruptamente desde 1969 – um recorde de durabilidade. Além de talentosos autores que se especializaram em GEKIGA, veremos que mesmo desenhistas consagrados com trabalhos feitos para crianças produziram algumas séries para adultos, como Osamu Tezuka e Shotarõ Ishinomori.

Este é o GEKIGA REVIEW. Lamentamos, mas este não é um espaço feito para necessariamente agradar teens e baixinhos.

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